14 de Setembro de 2017
Hoje iniciei a hormonoterapia com testosterona. Este tratamento é oferecido pelo SUS para aquelxs que sentem-se oprimidos pela imposição social do sistema binário de gênero homem/mulher.
1ª dose de T
2ª dose de T
16 de Setembro de 2017
Sinto que estou suando mais do que o normal. Tive dois sonhos violentos esta noite.
20 de Setembro de 2017
A libido aumentou. Estou sentindo mais tesão pelo meu corpo, por mim mesmx, pela minha decisão.
26 de Setembro de 2017
Minha voz começou a falhar, sinto que estou roucx. Começo a me preparar para contar para minha família. Ainda não sei como fazer.
01 de Outubro de 2017
Sinto muito calor.
06 de Outubro de 2017
Ofereço testosterona ao meu corpo como um ato político para uma reexistência não-binária. Reconstrução da auto-imagem, transmutação dos afetos. Tento reconfigurar meu coração, receber a outra em seus insurgentes processos, assim como insurjo incessantemente do processo de estar vivo.
Aceitar as dissidências, refazer caminhos. Propor minhas intensidades, e ser afetado por outras intensidades que emanam nx munde. Abraçar minha estrada, meu passado, meu presente. Me perdoar a cada segundx. Somar ao munde mais uma possibilidade de ser é o risco necessário para criar um corpo onde meu coração possa bater.
11 de Outubro de 2017
Não menstruei mais. Mas é meio comum minha menstruação não vir.
Tive espinhas onde não costumo ter. Realmente estou vivendo a puberdade. Me masturbo como um adolescente. Quero conhecer minha vagina, meu clitoris, quero ser parte do meu prazer.
12 de Outubro de 2017
INSATISFAÇÃO.
Percebo em mim a manifestação deste sentimento. Algo que se repete na minha vida há anos. Começo a me relacionar com as coisas de uma forma saudável até certo ponto, depois de um tempo vem a insatisfação, o tédio, o: "não é mais isso que eu quero". Acontece com coisas, pessoas, estudos, trabalho, casa. Acontece em tudo. Acontece porque acontece comigo também, com o lugar que ocupo, com o lugar que venho tentando ocupar há 34 anos e não consigo. Existem apenas 2 opções: ser mulher, ou ser homem, feminino ou masculino. Como mulher, por ter nascido com vagina, venho tentando há tempos. Como homem, não sei, nunca serei um homem CIS. Posso até ter a passabilidade de um, mas não terei pênis, quiçá tirarei os seios.
É preciso ocupar outro lugar, e ainda mais, é preciso inventar e reinventar este lugar.
Cansei de estar insatisfeita, cansei de mudar tanto. Cansei desse excesso de ansiedade, dos distúrbios alimentares. Cansei de tentar ocupar o mundo como mulher. Sou outrx, sou eu, sou nós, sou maré. Não sou homem, nem mulher. Sou transfeita.
3ª dose de T
15 de Outubro de 2017
Conversa com a Natalia Coehl:
Eu: Tem muitos alimentos q tem o xenoestrógeno
Eu: Q é uma espécie de estrogeno, parece
Naty: Q louco papa
Naty: Isso me faz pensar em muitas coisas
Eu: Oq?
Naty: Sobre a forma como tu tá mexendo no teu corpo... uma relação interna ... sem ser psicológica ... mas com mudanças de substâncias q conduzem de certa forma as nossas emoções
Naty: E no q a bonitinha se relaciona com isso
Naty: Ou a desconstrução do patriarcado no corpo
Naty: E se vc ao tomar esses hormônios pode nos trazer uma experiência física do q venha a ser homem
Naty: E se isso faz sentido
Eu: Na verdade, naty, trazer com a experiencia a reflexão sobre a ineficiência da construção social sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, pois libido e disposição física, por exemplo, não são características exclusivas dos homens. Muitas vezes depende da alimentaçao e de como vc digere emocinalmente a vida. Eu, papá, não quero trazer a tona as diferenças entre homem e mulher, pelo contrário, quero DETONAR esse binarismo, que cria uma oposição (totalmente construída), e por consequencia, uma hierarquia opressora entre as pessoas.
Naty: Sim
Naty: Maravilhoso
Naty: E essa questão vem da mistura q tá acontecendo aí dentro e fora
Naty: Isso é muito potente
Eu: isso mesmo
16 de Outubro de 2017
Eu estava pedalando ontem perto do minhocão (transgredindo um bocado, porque o pedal não pode virar norma) e um motoqueiro me xingou de viado. Mal sabe ele o elogio que me fez. Muito amor pra você, bro!
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28 de Outubro de 2017
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Resolvi parar de mostrar as minhas modificações externas em relação as dosagens de testosterona. Me interessa agora observar e seguir as modificações internas. Aquilo que se modifica em mim em conexão com as convergências e divergências do discurso de gênero na vida.
4ª dose de T
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É uma escolha, tudo isso é uma escolha que não está apartada da história do meu corpo, da minha vida. Poderia ir por outro caminho, buscar outro desafio. Mas neste é onde mais me encontro, é neste onde mais me perco também. Quando me perco dói. Vem como ferida, me rasga. Mas existe a fase em que me costuro, furo por furo, conectados por um percurso. Daí me acho novamente. E se não me perdesse, não poderia ter a sagacidade de fazer estes furos guiados por uma linha. Criar artísticamente faz isso comigo, me rasga, e dói. Ierê Papá não poderia ser diferente, um rasgo, quantos furos? Uma linha a guiar-me na imensidão da ferida. Conectar. Minha família é o mundo.

Nos últimos tempos venho mudando de casa o tempo todo. Casa do corpo, corpo da casa. Agora acabo de chegar na Vila Romana (SP). É um momento muito especial onde já estou há quase 2 meses em T. Meu corpo-casa está se modificando para criar masculinidades, meu corpo-casa se desafiou a transformar seus afetos, como afeta e é afetado. Busquei uma casa-corpo que me desafiasse a isso, uma casa-corpo que favoressece a isso. Numa casa-corpo que tivessem pessoas que admiro profundamente. Eu não poderia estar melhor acompanhada. Obrigada, Livinha por aceitar morar dentro desta transformação. Obrigada por você me ensinar tanto sobre o afeto, sobre o amor.
13 de Novembro de 2017
5ª dose de T
28 de Novembro de 2017
Ser convidado para uma roda de conversa sobre transgeridades e lugar de fala, e ainda ter medo de falar, e ainda me sentir oprimido. Lá, essa opressão não ocorria, mas o sentimento se repetia em mim apenas pela ideia de exposição. Não apenas pela identidade oprimida, mas também pelas possíveis subjetividades oprimidas. A única coisa que podia fazer era ser sincero. Dizer o que estava sentindo, e que não estava sendo fácil. Quero agradecer a Isabela por ter me mostrado que devemos falar mais sobre nossas sensações e sentimentos, e não apenas sobre nossas ideias.
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Para dançar é preciso transferir-se no tempo. Um passo após o outro, nosso peso navega grávido de gestos penetráveis e movimentos impermanentemente vivos. Dançar, e pensar meus movimentos me possibilitou entrar neste processo, porque é como transferir pesos. Aqui, o meu próprio peso, ou seja, pensar-se, pesar-se, transferir-se como uma pedra, como uma pena, como um gato, uma onda, como um gesto, como um sentimento, um pensamento. Mudar de um lugar para outro. Pertencer e não pertencer mais. Morrer em vida, nascer em morte, viver a própria morte se transmutando em vida. Cada palavra dita, um pedaço que vai embora ecoando partes de mim nesse munde. Cada palavra ouvida um pedaço de nós-munde que chega, me costura, e me transforma. Palavras, pesos sem medidas, me assentam ou me flutuam. Arte que me transfigura. Pessoas, pesos sem medidas, me assentam e me flutuam, artesões de si, arteiros de luta. Somos todos maré. Não é que nadamos juntos, é que somos a própria onda quebrando na beira do mar, enchendo e secando magnetizados pela Lua.
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30 de Novembro de 2017
6ª dose de T
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18 de Dezembro de 2017
A arte assalta os sentidos.
Evoca ausências.
Sou vítima.
sou criminoso.
Sou também o crime.
Sou o bandido do beco,
Um ladrão de buceta.
Hoje eu tomei café com uma pessoa cis. Uma mulher, doce, simpática. Era um encontro formal para assinar um contrato. Foi nítido como me inferiorizei. Como a minha fala estava infantil, como reduzi minha história, meu corpo. Minha auto-estima estava lá embaixo. Não era culpa dela, não exatamente dela. Ela foi fofa comigo. O problema é o que ela carrega de história no corpo dela. A estética do corpo dela (branca, loira, magra, uma barbie), a educação formal, a cadela de raça que a acompanha todo tempo. Não tive raiva nenhuma, mas percebi minha coluna se curvando, minha fala infantilizada. Quem eu sou diante de tal pessoa?
27 de dezembro de 2017
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DIÁRIO PARA UM UM DESVIO
28 de Dezembro de 2017
“A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”

Manoel de Barros.

Estou aprendendo com isto tudo que Ierê Papá é arte-vida. É para aprender a expressar a maneira como sinto o mundo. Algo que tem estado preso e agarrado em algum lugar da garganta.

Performando gênero vou me reecontrando como indivíduo social e político dentro de uma perspectiva mais autônoma. Vou delineando passos mais firmes, sem perder o movimento nômade das identidades.

Sou uma pessoa trans masculina não-binária, sou ciborgue. No meu sangue corre um alto nível de testosterona fabricada por cientistas. Esse produto altera minha aparência, meu humor, esse produto altera como as pessoas me vêem. Como as pessoas me vêem me altera. É um diálogo transverso.
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7ª dose de T (ciclo de 3 meses)
06 de fevereiro de 2018
O processo é lento e ainda vai dar muitas voltas.
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